faz hoje 2 anos, inteirinhos, que assinei a escritura do meu cantinho no mundo.
e faz hoje 1 ano e 20 dias, contados pelos dedos, que te fui buscar ao teu cantinho d'abrigo.
lembro-me de percorrer a página, lentamente, e de parar naquela personagem enigmática. patinhas brancas, olhar assustado. cinzenta, como a primeira gata que tive, ainda criança. [Oriana, baptizada segundo o maravilhoso livro de Sophia. Oricas para os amigos ou Gata-Mãe para os meus pais.]
não sei se foi precisamente isso: saudades de uma Oriana que era tão especial como diferente. ou se foi empatia imediata por aquele olhar de bichinho assustado que não sabe bem onde está ou para onde vai. na altura, nem me ocorreu interrogar-me porque é que todos os gatos para adopção tinham várias fotografias em diferentes posições, habitualmente a brincar ou a dormir pacificamente, e tu só tinhas uma, com ar fugidio e duas mãos humanas a manterem-te na objectiva. que interessava? poucos dias depois, armada de uma transportadora e terrivelmente feliz, fui buscar-te à tua família de acolhimento.
a sala era um festival de gatos - de todos os tamanhos, cores e simpatias. só tu estavas desaparecida. percorri todos os cantinhos com o olhar, mas em lado nenhum se via a minha pequena peste cinzenta. as tuas amas procuravam-te também, e eu comecei a sentir um piquinho de inquietação: estavas escondida, no canto mais inacessível da sala, com um olhar absolutamente aterrorizado.
já em casa, abri a tua transportadora. saíste, muito calada, muito quieta. eu mostrei-te o teu quarto de banho e a tua salinha de refeições. e depois, pus-te no chão. e tu desapareceste.
simplesmente desapareceste.
encontrei-te debaixo do sofá, no cantinho mais protegido da sala. chamei por ti. nada. achei melhor não forçar.
um dia.
dois dias.
três dias.
não saías do teu esconderijo. a tua comida permanecia inalterada. a tua areia, impecavelmente limpa. diacho. eu estava triste e preocupada. e tomei uma decisão: se não te alimentasses nesse mesmo dia, teria que te devolver.
com o máximo de meiguice possível, arrastei-te do teu esconderijo. apertei-te no meu colo, esmaguei pedacinhos de comida entre o polegar e o indicador e aproximei-os do teu focinho. lentamente, começaste a comer. quando estavas satisfeita, encostei-te contra o meu peito. achei que todo o mamífero se sente em casa perante o barulho de uma respiração e um bater de um coração. adormeceste, muito devagarinho. nesse dia, tornei-me a tua melhor amiga.
1 ano e 20 dias depois.
segues-me para todo o lado. corres para mim aos saltos quando entro em casa, e protestas - audivelmente - quando passo demasiadas horas fora dela. estás sempre no mesmo compartimento que eu: se estou a ver televisão, estás nas costas do sofá com o focinho apoiado no meu ombro esquerdo; se estou na cozinha, estás num dos bancos altos ou no parapeito da janela; se estou no meu quarto, estás aos pés da cama ou em cima da cabeceira. nem no quarto de banho tenho privacidade - enquanto eu tomo banho, esperas pacientemente deitada no bidé. não morres de amores pelo secador de cabelo, mas aguentas firmemente junto aos meus pés.
já és crescida, mas continuas a preferir comida de gato bebé. melhor do que isso, só os pedacinhos que me obrigas a tirar do meu prato para ti, com o teu olhar absolutamente insuportável. quando te assustas por qualquer motivo, corres para mim e enterras o teu focinho com força no meu pescoço.
comprei-te já tantos brinquedos diferentes, mas os teus preferidos continuam a ser os meus elásticos de cabelo, que roubas sem dó nem piedade e que te divertes a atirar a mais de metro e meio de altura para depois apanhares em pleno voo. eras capaz de passar horas na varanda a mordiscar as plantas que eu tão carinhosamente planto e trato.
nos dias de chuva, passas um tempo infinito sentada na janela a olhar para o horizonte.
quanto trouxe um elefante de peluche gigante cá para casa, não te incomodaste minimamente. mas quando as mesmas pessoas me ofereceram um tigre com 5 vezes o teu tamanho, sentiste-te ameaçada e atacaste.
não gostas de pessoas. para além de mim, digo: não gostas quando alguém vem cá a casa. nesses momentos, voltas a menina e refugias-te no teu canto preferido debaixo do sofá. tenho amigos que nunca te viram sequer o focinho.
és um sismógrafo peludo e saltitante, e raras vezes te vi tão inquieta como nas horas que antecederam aquele pequeno sismo em dezembro. todos os dias, por volta da meia noite, és possuída por um espírito ruim que te faz dar corridas estonteantes e derrapar soalho fora a grande velocidade. és uma adepta da velocidade, e por isso gostas de dar as curvas na parede.
às vezes percebes, aborrecida, que eu não me lambo como devia, e decides tu própria assumir esse trabalho de limpeza. quando eu me espalho no sofá, gostas de alinhar junto ao meu peito. gostas de te enfiar em todas as sacas vazias que encontras e fazes com que elas ganhem vida pela casa toda. gostas de mastigar as flores que me oferecem e que eu gosto de pôr numa jarra, na entrada. sempre que apanhas a minha cabeça ao teu nível, desatas a dar marradinhas como se não houvesse amanhã.
adoras pendurar-te e balançar nas cortinas da sala, mas por algum motivo que desconheço só o fazes na cortina que está parcialmente escondida atrás da chaise-longue. gostas de saltar para os meus joelhos e fazer patinhas durante horas nas minhas pernas. adoras enroscar-te no puf, e estás absolutamente convencida de que ele foi uma prenda para ti, e não para mim.
1 ano e 20 dias d'alice.
2 anos de casa própria.
uma e outra coisa fazem parte do mesmo todo inatingível.
diacho, fazem mesmo.